Estudos Socioeconômicos

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3.5          Estudos Socioeconômicos da Comunidade da Tapera

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3.5.1 Equipe Responsável

NUMAVAN – Núcleo de Estudos em Monitoramento e Avaliação Ambiental

Professor Luiz Renato D´Agostini, Dr.

Michelle Bonatti,

Larissa Hery Ito R. Homem

Paulo Martins Rangel

3.5.2 Introdução

O presente relatório integra o Projeto de pesquisa “Mudanças climáticas, desigualdades sociais e populações vulneráveis no Brasil: construindo capacidades”. Em nível nacional, o projeto envolve estudos em quatro biomas brasileiros, a saber: Caatinga, Mata Atlântica, Amazônia e Cerrado. Este relatório, especificamente, refere-se a estudo realizado no bioma Mata Atlântica. Mais especificamente, trata-se de relatório de investigação sobre questões associadas à dinâmica climática e seus impactos em âmbito local, considerando-se em especial o grau de vulnerabilidade de população de baixa renda na comunidade da Tapera da Base, no Município de Florianópolis-SC.

A Comunidade da Tapera da Base[1], localizada a 27 km ao sul do centro de Florianópolis-SC abriga, agora no ano de 2010, uma população de aproximadamente 12 mil pessoas.  Os dados do IBGE (2000) mostram que entre 1990 e 2000 a população desta localidade aumentou em cerca de 250%.  A localidade da Tapera da Base passou à condição formal de Bairro em 2005, por força da Lei Nº 6.919, de 29 de dezembro de 2005, que dispõe sobre o ordenamento das Unidades Espaciais de Planejamento 123 (Tapera da Base) e 124 (Pedregal).

A denominação Tapera da Base já reflete, pelo menos em parte, a localização geográfica e aspectos de relações sociais e institucionais vividas nesta comunidade. Espacialmente, trata-se de uma comunidade de moradias muito modestas e situadas “atrás” da Base Aérea. Mais especificamente, em relação à Cidade de Florianópolis, a comunidade está situada entre à margem das águas do mar e um manguezal, sendo ainda que entre ela e a cidade está situada a Base Aérea.

O eixo orientador da presente investigação, que é componente do Subprojeto Populações, visa a desenvolver uma melhor compreensão sobre a questão da vulnerabilidade de populações frente aos riscos de origem ou afetados pela mudança na dinâmica do clima. Em outras palavras, o objetivo é subsidiar estratégias voltadas à promoção de capacidades de adaptação às implicações de mudanças climáticas, ou mesmo à prontidão e de reações individuais, coletivas e institucionais, frente às implicações de eventos climáticos extremos.

É, portanto, um dos pressupostos no Projeto, que a pesquisa nos diversos biomas e comunidades eleitas possa auxiliar no mapeamento de como está sendo exercido o papel dos governos e, mesmo, subsidiá-los com informações, frente às mudanças climáticas e seus impactos em populações de baixa renda. Populações essas comumente vivendo uma situação de risco ambiental crescente em decorrência, principalmente, das dificuldades sociais implicadas na baixa renda em um mundo de relações orientadas pelo mercado. A partir de uma melhor compreensão dessa problemática, o objetivo é, assim, dispor de condição para apontar, acompanhar e avaliar medidas necessárias no âmbito da organização comunitária e de programas governamentais, a fim de construir uma agenda de ações que enfrente as implicações da dinâmica climática em curso.

3.5.3 Caracterizações da área de pesquisa

3.5.3.1       Estado de Santa Catarina e eventos climáticos extremos

O Estado de Santa Catarina, com área de 95.985 km, possui 293 municípios e conta com uma população superior a seis milhões de habitantes (IBGE, 2010). O clima é predominantemente subtropical úmido o que proporciona temperaturas variando de 13 a 25° C, com chuvas distribuídas durante todo o ano, e apresenta as quatro estações são bem definidas.

Do ponto de vista do relevo destaca-se no Estado o Planalto Meridional, ladeado em direção ao mar pelo Planalto Atlântico e a Planície Costeira, Mais especificamente o relevo se mostra em forma de terrenos baixos, enseadas e ilhas no litoral, planaltos a leste e oeste e depressão no centro. No tocante a vegetação há como característica os mangues no litoral, mata das araucárias no centro, campos a Sudoeste e faixas da floresta a leste e oeste.

No tocante às adversidades climáticas, estas têm afetado significativamente o Estado ao longo de sua história, principalmente, em decorrência de algumas características marcantes na região, a saber:

– Elevados totais pluviométricos, que resultam em grandes áreas afetadas por deslizamentos, enchentes, inundações e quedas de blocos de rochas, implicando, frequentemente, grande número de desabrigados, e mesmo mortes de humanos;

– Prolongados meses de estiagens, que prejudicam a agricultura e a pecuária, afetando a renda dos agricultores e pecuaristas, bem como de toda uma cadeia produtiva;

–  Tempestades severas, que frequentemente geram vendavais, granizo, tornados e marés de tempestades, deixando inúmeras residências totalmente destruídas ou destelhadas. Além de prejudicar significativamente as plantações e outros segmentos da infraestrutura dos municípios, esses eventos afetam, em especial, os serviços de comunicação, suprimento de água e energia elétrica.

Conforme o “Levantamento dos Desastres Naturais Causados pelas Adversidades Climáticas no Estado de Santa Catarina (período 1980-2000)”, organizado por Herrmann et al (2001), Santa Catarina é um dos estados onde houve aumento de ocorrência de tempestades severas. Segundo a autora, para o período 1980-2000 a maioria dos desastres aturais computados está associada  às instabilidades atmosféricas severas, isto é, aqueles associados a decretação de situação de emergência e estado de calamidade pública. Destes destacam-se as inundações graduais como as mais frequentes, com 1.215 episódios, seguido pelos vendavais e inundações bruscas, com 352 e 322 episódios, respectivamente.

Em breve retrospectiva podemos apontar no Estado desastres significativos com origem no clima. Um dos mais relevantes desastres na região e com origem no clima foi a inundação em 1974 quando o nível do Rio Tubarão, no Sul Catarinense, subiu mais de 10 metros e inundou  a cidade, resultando em 199 pessoas mortas e 65 mil desabrigadas/desalojadas (Figura 1).
Figura 1. Aspecto da grande inundação de Tubarão, ocorrida em 1974.

Em julho de 1983, cinco dias de chuvas intensas fizeram o Rio Itajaí-Açu subir mais de 15 metros (Figura 2), inundando grandes extensões de 90 municípios, entre eles Blumenau, Itajaí e Rio do Sul. Entre outras importantes implicações, ocorreram 49 mortes e aproximadamente 198 mil pessoas desabrigadas (Fonte: Secretaria de Segurança Pública- SSP/SC).
Figura 2. Aspectos do Porto de Itajaí e do interior do município na enchente de 1983.

No ano de 1997, devido à influência do fenômeno El Niño o Estado de Santa Catarina sofreu, com especial intensidade, os impactos de eventos extremos climáticos. O fenômeno provocou inundações de grandes proporções nos meses de janeiro e outubro. As enchentes de janeiro afetaram 35 municípios, resultando em 14.267 pessoas desabrigadas e sete mortas. Já em outubro as cheias inundaram 37 cidades deixando 8.777 pessoas desabrigadas, com duas mortes (Secretaria Estadual de Segurança Pública).

Ainda em 1998, registrou-se a ocorrência de enchentes que atingiram, principalmente, o Município de Blumenau. Todavia, governos de 63 municípios do Estado declararam Situação de Emergência e outros 14 declararam Estado de Calamidade Pública, com 135 mortes. Mais de 80 mil pessoas foram desalojadas.
Figura 3. Enchente de 1998 no Alto Vale. Fonte: www.terra.com.br

Em março de 2004 foi o Furacão Catarina que atingiu o litoral e o Sul de Santa Catarina (Figura 4). Com ventos de até 150 km/h, o fenômeno atingiu mais de 40 municípios, com 35.873 casas danificadas, sendo 993 destruídas (Figura 5). Quatro pessoas morreram, pelo menos 518 ficaram feridas e aproximadamente 33 mil pessoas ficaram desabrigadas.
Figura 4. Imagens do Furação Catarina no ano de 2004.
Figura 5. Efeitos do Furação Catarina

No ano de 2008, o Estado Catarinense foi novamente afetado por eventos climático extremos: um prolongado período de estiagem nos primeiros meses do ano (Figura 6), e uma primavera com chuvas contínuas e intensas, resultando em enchentes, enxurradas e deslizamentos (Figura 4). No início daquele ano registrou-se 67 municípios em situação de emergência em face da estiagem. O fenômeno durou mais de 40 dias, atingindo especialmente a Região Oeste do Estado, o que acarretou sérios prejuízos nas lavouras.
Figura 6. Aspectos das implicações da estiagem de 2008 no Oeste Catarinense.

Em setembro de 2009, Santa Catarina foi atingida por fortes temporais com granizo e ventos de mais de 180 km/h em vários municípios. Esses eventos extremos ocorreram em ampla extensão do Oeste ao Norte do Estado. No município de Guaraciaba (Oeste Catarinense) o forte temporal durou aproximadamente 1h30min, provocando quatro mortes, 310 desabrigados, 852 desalojados, 209 edificações destruídas ou fortemente danificadas.

Abaixo a Figura 7 sintetiza a natureza e o número de eventos climáticos extremos e formalmente reconhecidos pela Defesa Civil do Estado de Santa Catarina. Enquanto que, segundo dados da Defesa Civil Nacional, o Estado de Santa Catarina teria sofrido 140 eventos extremos no ano de 2010. De qualquer forma, considerando os últimos quatro anos, Santa Catarina foi o terceiro estado brasileiro mais atingido por eventos extremos e o segundo mais atingido entre os estados contemplados no projeto Mudanças climáticas, desigualdades sociais e populações vulneráveis: construindo capacidades.
Figura 7. Natureza e número de eventos climáticos extremos formalmente reconhecidos pelo Estado de Santa Catarina em 08/2010. Fonte: UOL Notícias – Defesa Civil SC

A Figura 8 abaixo ilustra a distribuição espacial dos desastres naturais no Estado.
Figura 8 Distribuição espacial dos desastres naturais em Santa Catarina (1980-2003). Fonte: Marcelino, Nunes e Kobiyama, (2005).

Num panorama geral pode-se dizer que com relação à distribuição espacial de desastres naturais em Santa Catarina (Figura 8), as mesorregiões mais afetadas foram a Oeste Catarinense, Vale do Itajaí e Grande Florianópolis, o que resulta nos maiores índices de perigo. A mesorregião Oeste Catarinense é fortemente afetada pelas tempestades severas que desencadeiam elevadas taxas de precipitação, o que favorece a ocorrência de inundações bruscas, bem como eventos de vendaval, granizo e tornado. No Vale do Itajaí e Grande Florianópolis têm-se principalmente a ocorrência das inundações e escorregamentos associados às fortes chuvas, decorrentes da passagem dos sistemas frontais e da formação de sistemas convectivos, e ao relevo acidentado da vertente atlântica (MARCELINO, 2003; MARCELINO e GOERL, 2004; MARCELINO et al., 2004; HERRMANN et al, 2004 in MARCELINO; NUNES, KOBIYAMA, 2006).

3.5.3.2       Histórico da ocupação do território da Tapera da base, Florianópolis-SC.

O território da Tapera da Base, bioma mata Atlântica, é integrante do subdistrito do Ribeirão da Ilha desde a data de 11/07/1809 e se localiza a aproximadamente 27 km ao sul do centro de Florianópolis-SC. No local situa-se o Manguezal da Tapera com uma área de 53,89 hectares (538.900m), protegida desde 1985 pela Lei Municipal 2193/95, como de preservação permanente (APP).

O Distrito do Ribeirão da Ilha se caracteriza por ser uma área que ainda mantém características rurais em transição para o urbano, sendo que a Tapera já considerada de ocupação urbana. Sobre o uso da terra no Distrito do Ribeirão da Ilha basicamente se restringe às Atividades Agrícolas e Pastagens, e os Reflorestamentos, pontualmente localizado nas proximidades da localidade da Tapera da Base. A atividade de Reflorestamento em Florianópolis surgiu em 1963, com a introdução de plantas exóticas (de outras regiões), como o pinus e o eucalipto.

Constata-se que quase metade da localidade da Tapera da Base está situada sobre depósitos marinhos holocênicos entre 1 e 3 metros de altitude com de depósitos arenosos, argilo-arenosos e argilosos, com o nível do lençol freático muito próximo à superfície, não facilitam o escoamento das águas de qualquer natureza.

A ocupação humana da área de Mata Atlântica onde hoje se situa a Comunidade da Tapera da Base antecede, em muito, o processo de colonização Açoriana que deu origem à cidade de Florianópolis. Registros de uma milenar ocupação humana foram produzidas a partir do ano de 1960, mais especificamente, pelo estudo de um esqueleto humano que resultou exposto à superfície durante retirada de areia utilizada em construções na comunidade (FOSSARI,  2004). Além desse estudo, dispõe-se hoje de um registro de dados conduzido em extenso sítio arqueológico paralelo à linha de praia da Tapera, estudo esse feito pelo pesquisador e arqueólogo Pe. João Alfredo Rohr, entre os anos de 1962 e 1968 (SILVA, 1991).

Fossari (2004, p.188) assinala que a área, hoje, correspondente à Tapera da Base e, anteriormente, ocupada pelos indígenas Jês, “teria sido reocupada por uma população de tradição Guarani. Ocupação essa diagnosticada a partir dos mais de 20 mil cacos de cerâmica […] coletados nos estratos mais superiores…” do sítio arqueológico da Tapera da Base. Devido a essa ocupação pelo povo Guarani, que, evidentemente, não vivia limitações na escolha de espaço físico para instalar-se, supõe-se que a dinâmica hidrológica, onde hoje se situa a Tapera da Base, já foi favorável, segura, salubre e com boa disponibilidade de água[2] para o estabelecimento de comunidades humanas.

Em estudos mais recentes e realizados nessa área, Cesa (2008) aponta que no final da década de 50 do Século XX até 2008 e, provavelmente, até os dias atuais, ocorreu forte fracionamento das áreas das chácaras. Este fato reflete o declínio na intensidade das atividades agrícolas bem como o intuito de uso residencial e desenvolvimento da maricultura no local. Segundo depoimentos atuais de moradores mais antigos da localidade Tapera da Base, até o fim da década de 50 do Século XX, as poucas residências situavam-se ao longo da Rodovia Baldicero Filomeno. Mas, segundo Machado (2002 apud CESA, 2008), o número de habitantes deste distrito já alcançava, em média, o patamar de quatro mil moradores já na década de 70. De qualquer forma, foi a partir desta década que ocorreu forte incremento populacional na área.

Entre as causas e aspectos que propiciaram este incremento populacional no local está a pavimentação da ligação rodoviária entre a Tapera da Base e o centro de Florianópolis. A via asfaltada possibilitou o surgimento de vários loteamentos para fins residenciais, em muito induzidos e facilitados pelo processo de repetida subdivisão das chácaras antes utilizadas para agricultura. Estes loteamentos, em sua maioria e quando minimamente planejados para simplesmente viabilizar a divisão de terras e construção de moradias, resultam na ocupação irregular do território. Esta ocupação se caracteriza pela presença de vias estreitas, não pavimentadas, e que se prolongam perpendicularmente à Rodovia Baldicero Filomeno, tanto em direção às encostas, cobertas por significativa extensão de Floresta pluvial (Mata Atlântica), tendo importantes impactos sobre a biodiversidade local, quanto na direção da planície marinha. Todos esses processos de ocupação territorial implicaram importante redução da biodiversidade e fragmentação do bioma Mata Atlântica.

De acordo com declaração do Presidente da Associação Comunitária do Pedregal (subdistrito vizinho à Tapera da Base), a área de mangue da Tapera foi sendo aterrada e, então, comercializada por preços muito acessíveis, seja para interessados na construção de moradias permanentes, que predominam hoje, seja para moradias de veraneio, predominantes no passado. Consequentemente, a ocupação desta região ocorreu de forma muito rápida e desordenada, com importantes implicações sobre a biodiversidade, fluxos e disponibilidades de água, bem como sobre as condições de salubridade. Tudo ocorreu sem qualquer planejamento, ou seja, construíram-se ruas segundo conveniências circunstanciais e sem respeitar as dimensões regulamentares, muitas vezes dificultando a passagem de veículos, como os caminhões para a coleta de lixo, por exemplo. “Os setores públicos responsáveis pelo ordenamento da urbanização não “enxergaram” a ocupação flagrantemente irregular das áreas de mangue”. Foi isso que ocorreu e é possível observar a partir das mais recentes fotos aéreas do local, do ano de 1998 (Tabela 1).

Ano

Área de Manguezal (ha)

Floresta (primária e em estágio inicial de regeneração) (ha)

Área Urbana (povoada) (ha)

Reflorestamento com espécies arbóreas exóticas (ha)

Outros (ha)

1938

1.508

(25,9%)

1.541

(26,5%)

6

(0,12%)

ausente

(0,0%)

2.768

(47,5%)

1978

818

(14,1%)

2.437

(41,8%)

302

(5,2%)

30

(0,5%)

2.236

(38,4%)

1998

710

(12,1%)

2.746

(47,1%)

820

(14,1%)

40

(0,7%)

1.509

(26,0%)

Fonte: TRINDADE (2009)
Tabela 1: Natureza e evolução da ocupação da Bacia hidrográfica do Rio Tavares e da Tapera da Base no Século XX

Frente à intenção de diagnosticar estados de vulnerabilidade diante da dinâmica do clima, é relevante salientar que as moradias construídas naqueles loteamentos estão localizadas em terrenos cujo lençol freático é alto e, em decorrência disso, fortemente influenciado pelas marés. As restrições físicas a um adequado escoamento de águas são evidentes mesmo para um leigo em hidrologia.

Nestas áreas de mangue indevidamente ocupadas, os parcelamentos clandestinos e condicionamento de lotes são feitos usando-se de aterros com material diverso e comumente impróprio à dinâmica da água e à saúde humana. Aterros esses que agravam a dinâmica hidrológica e suas implicações sobre a disponibilidade de água, uma vez que interrompem a drenagem natural. O resultado desta ocupação é um meio quase insalubre e impróprio mesmo para a produção de alimentos em hortas caseiras. A situação se agrava na medida em que a comunidade não dispõe de sistema de coleta e tratamento de esgoto. Estes dejetos provenientes de residências ou de prédios comerciais são dispostos em cursos de água fluvial por meio de precários sistemas de tubos e canalizações para efluentes de cozinhas, de instalações sanitárias e da lavação de roupas.

Conforme dito anteriormente, a população sofreu um forte crescimento a partir da década de 70. Porém, foi na década de 90 que a ocupação precária cresceu exponencialmente na região da Tapera, conforme ilustra a Figura 9.

Figura 9: Ocupações na ilha de Santa Catarina por décadas da segunda metade do século XX

3.5.4 Perfil demográfico e socioeconômico

A Tapera da Base, como comunidade de baixa renda, difere da maior parte das comunidades mais pobres da região. Estas que se caracterizam por malhas irregulares e moradias aglomeradas, frequentemente, nas encostas. “Ainda que perto da área de mangue, de ribeirão e do mar, é mais semelhante às ocupações irregulares existentes em São Paulo, em grandes terrenos planos”. (ESPÍNDOLA, 2006 p.04).

A Secretaria de Estado do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (SDM/SC), com o intuito de avaliar o estado em que vivem algumas de suas populações, derivou o Índice de Desenvolvimento Humano Local (IDHL). Trata-se de índice muito semelhante ao clássico IDH e foi aplicado em 88 bairros de Florianópolis (LOGULLO, 2005, apud CESA, 2008). De acordo com Cesa (2008), embora à luz daquele índice a Capital tivesse alcançado uma melhora das condições para se viver entre os anos de 1991 e 2000, essa melhora não ocorreu uniformemente em todo o município. Dentre os bairros analisados, a Tapera da Base ficou com a 84ª posição. Segundo o Presidente do Conselho Comunitário da Tapera da Base, desde 2002, pouca coisa foi feita para mudar este quadro.

Em estudo realizado em 2005, o Conselho Comunitário levantou as principais necessidades dos moradores da Comunidade da Tapera da Base (CESA, 2008) a partir de manifestações coletadas junto a 217 famílias residentes nas áreas mais carentes. A ação, desencadeada pela própria comunidade, visava identificar soluções para os problemas existentes. De acordo com o autor, os resultados deste estudo apontaram demandas que abarcam desde a saúde até a regulamentação de registro de imóveis. Cerca de 70% dos consultados possuem somente documento de posse, destes 21% são residentes no local há mais de 15 anos. Isto denota o grau de marginalidade da condição social quando institucionalmente considerada.

Mais do que uma situação de insegurança jurídica, caracteriza-se uma situação de insegurança do modelo civilizatório do sedentarismo urbanizado.

Ainda segundo aquele autor, com relação à renda familiar, 48% têm renda entre um e dois salários mínimos e 46% responderam ter de uma ou mais pessoas da casa desempregadas. Quando perguntados sobre os principais problemas ambientais da comunidade, 67% responderam ser a falta de sistema de coleta e tratamento de esgotos, bem como suas implicações sobre a saúde humana. Com relação ao tipo de tratamento dado ao esgoto residencial, 61% utilizavam sistemas de fossas sépticas, 24% lançavam em valas, 9% lançavam diretamente na rede pluvial e os demais jogam os resíduos nos córregos e no mar (CESA, 2008, p. 55).

Em resumo, 39% da população descarta os resíduos diretamente nos cursos d’água e no mar, enquanto que 61% o fazem indiretamente. Estes dados denotam a precariedade da situação socioeconômica e ambiental dos que ali vivem. Mas acima de tudo denotam a carência de infraestrutura e a insuficiência de políticas adequadas, fatores estes que determinam o estado de vulnerabilidade da comunidade em relação às implicações de adversidades climáticas.

Dada localização geográfica da Tapera da Base, a sua história de formação e a natureza da instituição vizinha – Base Aérea – o acesso terrestre à comunidade se tornou limitado, se não insuficiente às necessidades normais de deslocamento de pessoas com um operar essencialmente urbano. O regime restritivo à liberdade de tráfego imposto pela ordem militar tem implicado importante aumento de caminho para se dirigir ao centro de Florianópolis, onde muitos moradores se deslocam diariamente.

Figura 10: Localização Tapera da Base e suas fronteiras com o manguezal, praia e Base aérea

Fonte: www.googleearth.com

Fonte segunda: TRINDADE (2006)

Além de a comunidade não dispor de sistema de coleta e tratamento de esgotos, cabe salientar que o fornecimento de água pelo serviço público para a maior parte da população local ocorreu somente no ano de 2000, com a inauguração da Estação de Tratamento de Água (ETA) da Lagoa do Peri (CESA, 2008). Todavia permanece sido motivo de preocupação por parte da população da Tapera da Base, que vive junto aos cursos d’água na planície e sobre o mangue, a falta de políticas e ações de saneamento. Por isso, entre os problemas levantados por atores sociais envolvidos na pesquisa e, em especial, nas reuniões dos fóruns de saúde e fórum reivindicativo estão as questões relacionadas ao lixo jogado na beira da estrada e nos cursos d’água, o esgoto a céu aberto como também a questão da falta de pragmatismo e efetividade institucional em intervir.

Quase metade dos habitantes da Comunidade da Tapera da Base está vivendo sobre a área de mangue e que somada à dinâmica das marés e as características de sedimentos e de topografia da região dificultam o escoamento das águas de chuvas intensas. A busca de soluções circunstanciais, comumente propostas e orientadas por leigos (moradores locais), induz ainda mais a falta de planejamento e de racionalização da ocupação do espaço por parte de uma população que cresce em taxa elevada. Praticamente metade das edificações está situada em terrenos com altitude abaixo de dois metros e, consequentemente, mais vulneráveis aos alagamentos e às implicações da baixa salubridade resultante. Além disto, a combinação de maré alta, falta de drenagem pluvial e crescente superfície de telhados e outras estruturas impermeáveis favorece, notoriamente, a ocorrência de inundações (Figura 11). A construção de imóveis em áreas tão frágeis, do ponto de vista ambiental, evidentemente coloca em risco a saúde da população que aí vive.

Figura 11: Alagamentos na Tapera da Base

Relação à localização e situação socioeconômica da comunidade de Tapera da Base, a falta de ordenamento na ocupação territorial na Tapera da Base, em muito decorrente da falta de políticas de desenvolvimento por parte do poder público estadual e local, resultou em uma comunidade com crescente marginalização. É, principalmente, a partir desta condição marginal que se torna elementar apontar riscos crescentes para essa comunidade frente a consequências muito prováveis de uma alteração da dinâmica climática. A insuficiência de infraestrutura e de serviços sociais elementares, como assistência à saúde e educação, é claramente percebida pelos moradores e pode ser entendida como fator de vulnerabilidade Evidente também é a questão social da violência e da falta de segurança em face do avanço da criminalidade associada às atividades ilícitas, em especial as drogas.

Contudo, o fato de instâncias acadêmicas e governamentais perceberem-se interessados pela mudança climática e suas implicações pode ser uma oportunidade para as comunidades mais ameaçadas pelas dificuldades do cotidiano, de melhorarem suas condições de viver.

3.5.4.1       Vulnerabilidade sócioambiental e principais desafios ambientais

A noção de vulnerabilidade, em consonância com Cardona (2001) e Blaikie ET al. (1996), é termo de uma relação que define o grau de risco, a saber:

Grau de Risco = Magnitude da Ameaça x Vulnerabilidade do sistema suscetível.

Para Cardona (2001), a ameaça corresponde a um fator externo que, embora muitas vezes possa ser diagnosticado, em geral é de difícil ou nenhum controle, como chuvas, furacões ou terremotos. A vulnerabilidade, por outro lado, é fator interno ao ameaçado, ou seja, o grau de suscetibilidade do sistema ou do sujeito a uma ameaça. Assim, a vulnerabilidade é o resultado da condição em que se encontra o ser ameaçado e, por isso, é estado social se considerar o ser humano como o estando em situação de ser ameaçado. Deste modo, a diminuição dos níveis de qualquer destes fatores, ameaça ou vulnerabilidade, incorre na redução do grau de risco. Entretanto, como a vulnerabilidade é produto do operar de um sistema social, a mesma é passível de transformações frente a ações antropogênicas e, por isso, necessita ser tomada como central em estudos referentes aos graus de risco e prevenção de desastres.

Para Chardon (2008), vulnerabilidade resulta de processo integrador de diversos aspectos sociais e biofísicos. Em concordância com este autor, se assume nesta investigação que vulnerabilidade é resultado de um sistema dinâmico e por isto complexo que envolve a integração de diversos aspectos, tais como: socioculturais, biológicos, físicos, políticos, etc. Estes podem ser considerados subsistemas dentro do sistema vulnerável, isto é, as diferentes partes que, integradas, compõe o estado de vulnerabilidade.

Complementando essa ideia, ainda que os fatores biofísicos possam constituir componentes de vulnerabilidade, existem outros aspectos relevantes a serem considerados no que diz respeito aos envolvidos: questões de cunho humano, ou seja de caráter social/ cultural, que podem determinar ações e atitudes frente às ameaças. Emerge assim a percepção, a propriedade de atribuir significado aos componentes do estado de vulnerabilidade que determinará o grau de vulnerabilidade reconhecido pela comunidade ou mesmo pelos pesquisadores.

Em suma, tendo em vista que a vulnerabilidade é referência ao estado de um sistema, vivo ou não, frente a uma determinada ameaça, como apontam Bonatti et al (2009), o grau de risco implicado nestes casos, cuja dimensão é ainda objeto de dúvidas e especulação, também é , antes de tudo, uma questão de percepção. Em outras palavras, o risco não decorre somente da materialidade da ameaça, mas de significados atribuídos à mesma pelo ser consciente.

Desta forma, considerado o recorte que define o objeto dessa pesquisa, pareceu conveniente delimitar segmentos de população que estivessem envolvidos em condições específicas de vulnerabilidade – o que, em tese, favorece o compartilhamento da percepção da sua condição de vulnerabilidade. Essa necessidade de delimitação de segmentos da comunidade é mais verdadeira se considerada a extensão e a pluralidade da comunidade Tapera da Base. De qualquer forma, a necessidade de uma delimitação de área menor está fundada no próprio operar do Projeto de Pesquisa, que é voltado a estudos no âmbito de comunidades cujas respectivas populações são de algumas centenas de pessoas.

Independentemente de agravamentos possíveis em decorrência de mudanças no clima, já existe, hoje, na Comunidade da Tapera da Base uma população vulnerável às simples e corriqueiras alterações meteorológicas. Trata-se de uma comunidade vulnerável não apenas em decorrência de uma localização desfavorável e de insuficiências das políticas públicas, mas também em função da natureza de sua alternativa de reprodução social. Em outras palavras, a identificação da condição de população vulnerável é produto do próprio modo de ser dessa população no seu lugar, tanto quanto da condição física desse lugar. Trata-se da população de Catadores de Berbigão[3] da Tapera e de moradores das ruas mais sujeitas às inundações decorrentes de chuvas intensas (Rua do Juca).

3.5.4.1.1       O Caso dos catadores de Berbigão da Tapera

Para a população de catadores de berbigão da Tapera da Base, os riscos implicados na dinâmica climática – seja esta dinâmica em estado estacionário, normal, ou em processo de mudança irreversível – são, antes de tudo, riscos associados a fatores de ordem econômica e social. Estes dizem respeito às condições insalubres em que a atividade é exercida, às dificuldades de obter sua própria alimentação e às possibilidades de continuidade desta atividade em face da redução da diversidade biológica local.

Assim como os coletores de berbigão e moradores da Rua do Juca, parte das residências da população da Comunidade da Tapera da Base está, em sua maioria, situada em áreas sujeitas às inundações decorrentes da simples coincidência de marés elevadas com incidência de chuvas especialmente intensas. Trata-se, na verdade, de extensão da comunidade estabelecida diretamente sobre áreas de mangue com todos os problemas disso decorrentes.

O mangue junto à Tapera da Base possui extensão de aproximadamente 54 hectares. Esse ecossistema, fundamental para a manutenção e reprodução de diversas espécies marinhas, tem sofrido constantes impactos ambientais, principalmente aqueles decorrentes do crescimento imobiliário desordenado. Assim, o meio pelo qual o berbigão é coletado passa por um processo de contaminação e alteração ambiental. Tal situação compromete a qualidade da fonte de renda das famílias coletoras do molusco e a própria reprodução da espécie bivalve.

A dinâmica do berbigão é fundamentalmente determinada pelo regime de marés. Mudanças nesse regime podem simplesmente inviabilizar a continuidade da atividade de produção de alimento a médio e longo prazo, além de agravar as condições de insalubridade. Atualmente, a atividade é precariamente viável e nada aponta para uma possível melhora. Para que este cenário se altere, é necessário o desenvolvimento de ações apropriadas e fortemente apoiadas no âmbito da assistência técnica, bem como a promoção de outras políticas públicas de sustentação e desenvolvimento da atividade.

3.5.5 Metodologia

Os procedimentos adotados no desenvolvimento do processo de investigação foram previamente definidos no Manual de Pesquisa do projeto nacional e tomados como necessários ou adequados para alcançar os objetivos específicos deste e dos demais subprojetos de pesquisa de estudos de caso, a lembrar:

i. Mapear a vulnerabilidade de população bem delimitada;

ii. Identificar o grau de conhecimento e aspectos da percepção sobre a hipótese da mudança climática e suas implicações;

iii. Delinear estratégias emergenciais e estruturais para a composição de uma agenda de ações.

Os estudos foram conduzidos em quatro etapas, a saber:

– identificação de atores e programas

– consulta a Grupo Focal

– entrevista com atores sociais

– entrevista com famílias, cujos respectivos objetivos específicos e procedimentos são apontados a seguir, além de avaliação visual nos domínios e arredores da comunidade.

A primeira etapa, identificação de atores e programas visou a sistematizar programas e medidas institucionais ou não-institucionais em andamento, bem como, atores sociais mais fortemente envolvidos com as questões apontadas na caracterização do problema. Atribuiu-se um destaque especial aos fatores de impacto definidos previamente (moradia-urbanização, disponibilidade de água, saúde, alimentação e biodiversidade). Para tal identificação, foram contatadas diferentes instituições públicas de Florianópolis, bem como os próprios atores sociais entrevistados. Essa identificação foi sistematizada na forma que sugerem os quadros síntese a seguir.

Atores sociais locais

Identificação

Atribuições

Ações que incidem sobre os fatores de vulnerabilidade

Participação em instâncias públicas

Ações relacionadas com clima e os cinco setores de impacto

Observações complementares

Programas públicos

Programa

Órgão – Esfera de governo

Objetivos e linhas de ação

Instâncias de deliberação às quais a comunidade tem acesso

Relação com as questões da pesquisa

A segunda fase, consulta a Grupo Focal, visou aferir a percepção dos participantes sobre os fenômenos climáticos e seus impactos para determinar o grau de vulnerabilidades da comunidade. Paralelamente, buscou-se, também, mapear os atores sociais que poderiam ser entrevistados em maior profundidade.

O processo de consulta ao Grupo Focal foi orientado por cinco questões diretrizes previamente estabelecidas no projeto nacional, a saber: Adaptar-se a quê? Quem será afetado? O quê será afetado? Como se adaptar? Qual seria uma agenda de ação local adequada?

Com base nessas questões orientadoras, um pesquisador no papel de moderado desencadeou discussão de forma que os participantes se manifestassem sobre:

– problemas vividos na comunidade e relacionados ao clima;

– grau de informação sobre mudança climática;

– quais seriam as implicações dessa mudança para a comunidade;

– quem ou o que na comunidade seria mais afetado e como poderiam enfrentar a ameaça identificada;

– quem e no que deveria se envolver na adoção de atitudes para reduzir a vulnerabilidade da comunidade.

A terceira fase, a entrevista com atores sociais, visou a aprofundar o tratamento das questões orientadoras da pesquisa, esclarecer eventuais dúvidas suscitadas na discussão com o Grupo Focal e acrescentar à investigação aspectos não abordados durante a consulta a esse grupo.

A quarta fase, a entrevista com famílias, visou a avaliar o grau de vulnerabilidade percebido no estado vivido pela comunidade. Para tanto, e no âmbito do Sub Projeto Populações, um questionário foi elaborado, testado e aprimorado, tratando dos seguintes pontos:

– aspectos de identificação do entrevistado;

– perfil socioeconômico da família;

– percepção sobre o fenômeno das mudanças climáticas;

– ameaças, fatores de impacto e vulnerabilidade;

– elementos para uma agenda de ação.

Finalmente, e exclusivamente neste estudo de caso da Tapera da Base, uma quinta fase metodológica foi levada a cabo: um teste de aplicabilidade do Indicador da Qualidade de Condições para se Viver e Indicador da Satisfação em Viver essas Condições (IQCV/IQV) (D’AGOSTINI & FANTINI, 2008), estendido ao propósito de inferir o grau de vulnerabilidade de comunidades.

3.5.5.1       Método original do IQCV/IQV

Sucintamente, o método original do IQCV/IQV possibilita comparar e monitorar em quanto convergem ou divergem percepções de diferentes categorias de atores sociais em relação ao significado de condições vividas em determinado contexto. Tal procedimento é realizado a partir do processamento de grandezas objetivas associadas a significados substantivos.

Por meio da aplicação desta quinta e adicional fase metodológica, buscou-se, assim, investigar como distintas categorias de atores sociais percebem e avaliam oestado atual do “sistema comunidade” e a qualidade do operar desse sistema, no que diz respeito a aspectos determinantes do grau de vulnerabilidade O grau de vulnerabilidade é mais produto de percepção do vivente do que decorrência do estado objetivo das condições vividas. Desta forma, a aplicação do método do IQCV/IQV, em primeiro momento, possibilita que seja apontado o grau de divergência entre a vulnerabilidade da comunidade percebida pelos próprios moradores e a vulnerabilidade desta mesma comunidade quando percebida pelos pesquisadores. Com isso, mais do que descrever o que os pesquisadores percebem sobre as condições de vida e da vulnerabilidade de uma comunidade, surge a possibilidade de que os próprios habitantes avaliem suas condições para viver.

Posteriormente, ambas as avaliações poderão ser comparadas.

Esta comparação viabilizada pelo método IQV/IQCV pode ser fundamental na organização e acompanhamento de políticas públicas. A meta sempre será promover a convergência e o maior valor dos dois indicadores.

Supõe-se que, analogamente à caracterização da Qualidade das Condições existentes para se Viver (IQCV) e da Satisfação em Viver nessas Condições (IQV), a vulnerabilidade pode ser caracterizada a partir de diversos aspectos. Alguns destes podem ser de natureza essencialmente de infraestrutura (rede de esgoto, por exemplo); de natureza essencialmente socioeconômica (como renda, por exemplo); ou, essencialmente, de outra natureza qualquer. Alguns desses aspectos, todavia, possuem significado ambiental e sócio-cultural, como por exemplo, o estado de legalização das propriedades.

A partir da percepção externada por moradores associada a uma escala de grandeza operacional no algoritmo do método, obtém-se o Indicador de Vulnerabilidade Percebida pelo Morador (IVPM). Enquanto que o Indicador de Vulnerabilidade Percebida pelo Pesquisador (IVPP) é obtido por meio da associação entre a escala de grandeza e a percepção externada por membros da equipe de pesquisadores em relação àqueles mesmos aspectos.

Estritamente associada ao objetivo específico e complementar de avaliar a aplicabilidade do método IQCV/IQV na obtenção dos indicadores IVPM e IVPP, a aplicação prevista do método restringiu-se a um pequeno número (seis) de moradores. Também foi adotada uma versão simplificada das relações entre significados percebidos e valores atribuídos.

3.5.6 Análise dos resultados

A extensão da área de estudo, a numerosa população e a posição turisticamente privilegiada da Tapera da Base são aspectos contrastantes que revelam as condições para se viver comumente supostas na Ilha de Florianópolis e as condições do baixo grau de organização física e social naquela comunidade.

Relativamente poucos, ou pouco articulados, são os atores sociais institucionais identificáveis e com efetiva atuação em setores de impacto considerados na pesquisa (Tabela 3). O mesmo ocorre em relação aos programas em andamento, identificados como voltados a esses setores (Tabela 4).

Identificação

Atribuições

Ações que incidem sobre os fatores de vulnerabilidade

Participação em instâncias públicas

Ações relacionadas com clima e os cinco setores de impacto

Observações complementares

Conselho Comunitário da Tapera

Representação da Comunidade e Serviço Social

Atuação sobre o tecido social, auxiliando coesão e organização social da comunidade

Não identificada

Socorro em situações de inundações: alimentos, moradia, saúde

No tocante ao clima atuam em socorrer famílias atingidas por inundações.

Associação Amigos da Rua do Juca

Atividades da comunidade

Atua sobre o tecido social, auxiliando a organização social dos moradores

Não identificada

Moradia

Realiza atividades esportivas esporádicas

Associação moradores do Pedregal*

Atividades da comunidade

Atua auxiliando a organização social, especialmente na região da comunidade denominada Pedregal

Não identificada

Nenhuma

Atualmente pouco ativa

Associação Florianópolitana de Voluntários

Ações sociais em parceria com a Prefeitura e empresas

Ações que visam a minimizar a carência social

Não identificada

Alimentação

Doações em datas especiais. Programa de autoestima da mulher

Pastoral da Criança

Ações de saúde, nutrição, educação, cidadania e espiritualidade.

Doação de alimentos para crianças e atividades educativas.

Não identificada

Alimentação e saúde.

Atividades semanais

Grupo de Teatro

Reunião para desenvolvimento de atividades

artísticas, como foco em artes cênicas.

Ações que visam debater os problemas da comunidade de forma artística.

Não participam

Nenhuma

Incide sobre a coesão social, tratando de problemas como bullying, preconceitos, etc

* Não foram obtidas informações mais consistentes. Quadro sintético – programas públicos

Tabela 3. Atores sociais na Comunidade da Tapera da Base.

Programa

Órgão Esfera de governo

Objetivos e linhas de ação

Instâncias de deliberação às quais a comunidade tem acesso

Relação com as questões da pesquisa

Centro de Educação Complementar Tapera

Secretaria da Educação

Educação em período oposto à escola

Nenhuma

Indireta. Ações educativas podem ajudar a fortalecer a capacidade de criação e escolhas de  estratégias de adaptação

PSF: Programa de saúde da família

Secretaria Municipal da Saúde

Saúde

Nenhuma

Indireta. Ações que visem melhorar a condição de saúde da comunidade podem melhorar as condições dos indivíduos em caso de desastres climáticos

Programa Mesa Brasil (SESC)

(SESC)

Alimentação

Nenhuma

Indireta. A distribuição de alimentos auxilia na nutrição, que a sua vez melhora as condições dos indivíduos em caso de desastres climáticos.

Projeto Escola em ação EEB Tenente Almacchio

COEP

Mobilização de Prof. e alunos

Na escola os alunos participam de definição de ações

Formação de agentes multiplicadores para promover a sustentabilidade

Tabela 4: Programas sociais em andamento na Tapera da Base

Componentes do COEP/SC informaram sobre algumas das principais ações da sua missão institucional: a de mobilização das organizações para assumirem seu compromisso com as questões sociais do país tais como articulação de parcerias, incentivo à prática de projetos, entre outros. No caso da Tapera foram relatadas ações desenvolvidas com a participação do Conselho Comunitário e que, normalmente, têm em vista e são inspiradas em datas significativas: “Natal pela vida”, no natal; “Semana de mobilização pela vida”, no aniversário de falecimento de Betinho. Nesses eventos, são distribuídos alimentos, brinquedos e outras doações que vão de equipamento digital a lâmpadas de baixo consumo.

3.5.6.1       Lendo o Grupo Focal e Atores Sociais[4]

O não reconhecimento da ameaça silenciosa de uma possível mudança climática em curso incorre na não percepção de risco iminente ou crescente e, por extensão, uma equivocada avaliação do próprio estado de vulnerabilidade. A condição para o componente consciente perceber a si e sua comunidade vulnerável pressupõe a condição de inferir implicações de estados dessa organização social.

Estados esses que se supõe ser possível mudar para melhor mediante elaboração de estratégias de adaptação à situação minimante compreendida. No entanto, mesmo entre aqueles que, em princípio, melhor poderiam representar os interesses daqueles que sofrem com recorrentes inundações, no presente caso representados pelo Grupo Focal, é baixo o nível de articulação da informação para compreender e delinear atitude de prontidão frente a eventos climáticos extremos. Este nível de informação pode se visto em algumas das respostas destacadas, que foram apresentadas pelo grupo focal sobre o entendimento do fenômeno “Mudanças Climáticas”:

– “O clima tá descontrolado”;

– “Derretimento das geleiras”,

– “Aquecimento global”;

– “Um rio que havia no local, sumiu”.

De modo geral, até onde é possível agora inferir, os moradores da Tapera da Base pouco associam a dinâmica climática global e, muito menos uma mudança climática mais profunda, com os fenômenos de seu cotidiano. De modo mais específico, no grupo focal, composto por cidadãos mais predispostos a falar sobre assuntos colocados em pauta, houve respostas que indicavam alguma informação sobre mudança climática e possíveis implicações globais. Todavia, essas informações são insuficientes para diferenciar o que seria mudança climática global, como a notaram de alguma forma referida em veículos de comunicação, e o que seriam variações meteorológicas mais comuns.

As considerações manifestadas a partir das questões “Adaptar-se a quê? Quem será afetado? O quê será afetado? Como se adaptar?” e Qual seria uma agenda de ação local adequada?, invariavelmente, se reportavam às precárias condições presentemente vividas ou à duradoura desatenção do governo em relação à comunidade, mas não a uma possível mudança que viriam viver por força do clima, como veremos a seguir.

No Eixo “Adaptar-se a quê?” e “O quê será afetado?”, as respostas obtidas permitem inferir aspectos tais como:

– Falta de: infraestrutura, especialmente saneamento; pavimentação de ruas e passeios; locais de lazer; lugar para reunião e capacitação de moradores locais; bons colégios; transporte adequado; funcionários qualificados da área da saúde; articulações entre diferentes atores e programas sociais, como aquelas dos catadores de berbigão e de coletores de lixo reciclável.

– Invasão da área de mangue por parte de moradores.

– Grande número de animais abandonados.

– Alto índice de marginalidade, principalmente, em decorrência do tráfico de drogas.

Referente ao Eixo Qual seria uma agenda de ação local adequada? E assim a elaboração da agenda de ações, pode se destacar, restringindo-se às respostas e palavras dos atores sociais, os seguintes itens propostos;

– Plantar árvores, pois as crianças não plantam mais.

– Reciclar lixo.

– Distribuição de protetor solar.

– Fiscalização pelo Poder Público dos espaços públicos, pois há construção em cima da bica d’água.

– Adoção de transporte marítimo ligando a comunidade e a cidade (centro de Florianópolis).

Uma questão local mais específica também chama atenção: a relação da comunidade com a Base Aérea. Há fortes restrições ao direito de ir e vir em via pública sob controle militar. Apesar das limitadas e comedidas concessões por parte dos gestores da Base, os moradores consideram o rígido controle da passagem pela rodovia como arbitrário, tornando-se a causa de freqüente insatisfação manifestada por pelos moradores. Trata-se de relação produtora de componente sociocultural da vulnerabilidade de uma das partes, por força de hierarquia social, que pode ser questionada, mas é efetiva.

Já em relação às conseqüências derivadas de alterações do meio, mas não necessariamente associadas às alterações climáticas, é bem presente a percepção de estar ocorrendo diminuição na quantidade de berbigão. Essa redução na população do molusco é, comumente, atribuída aos efeitos da invasão imobiliária de área de mangue e ao desrespeito da época de defeso da espécie pelos próprios catadores, em clara alusão aos setores de impacto alimentação e biodiversidade.

No procedimento de entrevistas junto aos atores sociais, ficou mais evidente o interesse em compreender possíveis impactos de uma mudança climática. Todavia, tanto em relação ao significado do fenômeno mudança climática quanto a suas possíveis causas e impactos, as considerações refletem sempre uma situação bastante peculiar ao mundo de relações vividas por um e outro dos atores entrevistados.

Um aspecto mais geral do operar da Comunidade da Tapera da Base pode ser determinante da peculiaridade de visões manifestadas: a ampla extensão geográfica e populacional da comunidade, já com claras estratificações socioeconômicas entre seus moradores. Esta situação faz com que emirjam as mais diversas experiências, interpretações e demandas por parte dos membros da comunidade. Convém exemplificar.

O ator social entrevistado Coordenadora da Creche manifesta preocupação com uma possível responsabilidade da sua instituição no agravamento do fenômeno, uma vez que as considerações sobre a mudança climática e os impactos dela decorrentes restringiam-se a processos imagináveis a partir da dinâmica de eventos no âmbito do entorno da creche. Ao ser indagada sobre como avalia os programas da Tapera em relação à questão social e ambiental, a Coordenadora disse:

“- Falta preocupação das entidades públicas. Fossa aberta, até muitas pessoas já caíram lá. Mau cheiro. Há muito descaso e muito a ser feito. Até por conta da creche. Nós tratamos o esgoto, mas no final vai para uma vala sem tratamento(sic).

As informações prestadas pelo agente do Posto de Saúde permitem inferir uma melhor compreensão da problemática social local e suas relações com a dinâmica climática. Sua entrevista refletiu o entendimento pessoal construído a partir de vivências com fenômenos que ele, de alguma forma, vincula ao significado de mudança climática. Em outras palavras, ainda que orientado por uma visão mais abrangente da comunidade, pelo menos em relação àquela expressada pela Coordenadora da Creche, esse ator apresentou justificadas manifestações que refletem preocupações e entendimento dos eventos climáticos, mas sem que pudesse representar uma compreensão mais reflexiva sobre o significado de uma mudança climática global. No entanto, este ator social comenta sobre uma possível responsabilidade da comunidade sobre as Mudanças Climáticas:

– “Todos temos (responsabilidade). É uma bola de neve. Não jogar lixo, fazer rede de esgoto, tudo está na cultura. Eles queimam lixo. Todos contribuímos. O esgoto aqui é a céu aberto. Muita área invadida. Muito gato de água. Tem valinhas por onde passam cano de água potável dentro da vala grande. As crianças brincam ali” (sic).

Sobre a elaboração de um plano de ação e instituições que deveriam  participar para lidar com as mudanças climáticas:

– “Deveria participar a Saúde, Universidade, empresas. Deve haver uma mudança de cultura, mais investimentos. Hoje trabalhar com lixo reciclável, rende bem. Mas há pouco incentivo. Poderia ser mais bem aproveitado com cooperativas. Por outro lado há pessoas interessadas em melhorias, mas não sabe o que fazer. Sei de uma senhora que quer ensinar, tem uma máquina, mas não sabe o que fazer. Tem muita burocracia. Deveria estimular espaços e recursos para quem quer ajudar” (sic).

O ator Diretor do Grupo de Teatro da Tapera indicou claramente que os problemas mais importantes da comunidade não estão relacionados com as questões climáticas. Seu depoimento confere com as informações expressas pelo grupo que trata das relações conflitantes da comunidade: o caso das relações de Bullying nas escolas; famílias que vivem de precária subsistência; e o conflito entre moradores da comunidade e os habitantes do espaço da Base área.

O ator social Agente do Posto Policial foi quem mais denotou entendimentos sobre os significados ambientais e sociais associados a possíveis mudanças climáticas, sem relacioná-los diretamente a missão institucional do órgão ao qual está vinculado. Mas suas considerações sobre o assunto denotam uma compreensão que associa mudanças climáticas a eventos que causam desconforto circunstancial. Quando perguntado sobre o que as Mudanças Climáticas afetam o Brasil e o mundo:

– “Já está acontecendo. Não só na Praia da Armação. As casas estão caindo. Muita chuva, infiltração.Coisas que não aconteciam antes” (sic).

Em relação ao plano de ação e as instituições que deveriam participar no enfrentamento das para lidar com as mudanças climáticas:

-“Todos deveriam participar. O Conselho comunitário do bairro, que não é presente. A igreja, enfim a comunidade inteira. Na prefeitura os vereadores que têm proximidade também. Como plano de ação, verificar os morros, construções irregulares. Tem muita burocracia e é muito caro ter acompanhamento de engenheiros para construção das casas. A Prefeitura deveria formular uma planta de orientações onde construir, com o tipo de fundação certa… Essas coisas. Também deveria haver um programa de educação para ensinar os catadores de berbigão” (sic).

De qualquer forma, sobre os setores de impacto de alguma maneira mais relacionados à dinâmica climática, a partir das questões levantadas na forma prevista na definição do método de investigação, os atores sociais referem-se, com mais recorrência, aos riscos de alagamento como o impacto mais presente no âmbito da comunidade. De fato, seja em entrevistas formais ou em manifestações mais espontâneas, o alagamento, como evento com significado social evidente, é uma questão importante que afeta grande parte da comunidade, principalmente quando ocorrem precipitações mais intensas. Os alagamentos propriamente ditos ou mesmo elevados volumes pluviométricos que se tornam agravantes da condição de baixa-infraestrutura, de acordo com entrevista do agente do posto de saúde local, implicam na acentuação de doenças e complicações à saúde como gripes, asmas, alergias, enxaquecas e ainda infecções de pele, verminoses, diarréia, relativas ao tratamento da água.

Os alagamentos, no entender dos entrevistados, os alagamentos são cada vez mais recorrentes, em especial, quando coincide chuva intensa e maré elevada. Mas seria precipitado inferir que essa maior freqüência possa estar associada à mudança climática em curso, sem considerar a responsabilidade da crescente ocupação desordena do meio e seus efeitos sobre a drenagem no agravo desse evento.

Evidentemente, o conhecimento da comunidade sobre as mudanças climáticas é ainda incipiente. Mas convém reconhecer que essa incipiência é presente mesmo na academia. Não surpreende, por isto, que as respostas dos atores revelem dúvidas em relação a causas e conseqüências de uma possível mudança climática. Quando levados a se manifestarem sobre Como uma mudança climática poderia afetar-nos no âmbito global, os entrevistados pouco reconhecem que, além do sempre lembrado alagamento, a Comunidade da Tapera pode estar sujeita aos mesmos impactos pensados de forma mais ampla, no âmbito do global.

Referente às responsabilidades da própria comunidade, foi citado em especial o lançamento de esgoto e a conseqüente redução na disponibilidade de água potável, bem como o mau manejo do lixo e suas implicações sobre a saúde Humana. Estas considerações incluem os procedimentos dos recicladores – a reciclagem, aqui entendida como a coleta e venda de materiais descartados, a qual é uma atividade que propicia renda a muitos moradores da Tapera da Base.

Recorrentes também são as manifestações que denunciam a ausência de iniciativas de programas sociais e ambientais institucional ou comunitariamente promovidos.

Quanto à identificação de ações para elaboração de um plano de ação, as manifestações de atores sociais apontam a necessidade do desenvolvimento de um trabalho com os recicladores e de obras para construir locais adequados a disposição final do lixo. Aspecto igualmente lembrado, acima já apontado, é a evidente necessidade de tratamento de efluentes. Apesar de algumas iniciativas a respeito, desencadeadas pelo Conselho da Comunidade, a burocracia de órgãos públicos tem sido um empecilho para melhorias, segundo eles.

Outros problemas foram seguidamente citados mesmo que não estivessem prontamente associados à dinâmica do clima. Entre eles, citamos a ausência de espaços públicos para o lazer, carência na infraestrutura hospitalar e atendimento psicossocial.

Constata-se assim que os atores sociais representativos do pensar da comunidade da Tapera apresentaram diversidade de entendimentos e nas leituras sobre o significado de uma possível mudança climática em curso. Mas importa enfatizar que o próprio assunto Mudança Climática, como em geral é discutido na academia, não é, ou não parece ser, expressão presente no cotidiano dos entrevistados. Existem manifestações que denotam dificuldade de se associar um estado de vulnerabilidade atual crescente a dinâmica climática desfavorável. Esta constatação está bem de acordo com dificuldades que podem ser notadas mesmo na academia e formalmente apontadas por Piao et al. (2010) em estudos realizados na China:

Our review suggests that—on a countrywide basis—the consequences of recent climate change on water resources and agriculture have been limited both because climate trends remained moderate compared to natural variability, and because of the overriding benefits delivered by technological progress, in particular improved agricultural practice.

Ao mesmo tempo em que descrevem um cenário regional em geral preocupante em decorrência da dinâmica climática, os autores apontam que alterações no clima também implicam vantagens circunstanciais – em especial em relação ao cultivo de algumas espécies.

3.5.6.2       Ouvindo famílias especialmente vulneráveis

O questionário foi aplicado junto a famílias de dois segmentos da comunidade apontandos pelo Grupo Focal como sendo os mais vulneráveis. São eles: catadores de berbigão (08 questionários – 15% dessa população[5]) e moradores da Rua do Juca (08 questionários – 15% da população da região intermediária da via). Esta vulnerabilidade se deve, no primeiro caso, a dificuldade crescente em que vivem em função da, ainda, insuficientemente compreendida redução na coleta desse molusco do qual se alimentam. E no segundo segmento, porque vivem mais intensamente as implicações de alagamentos de sua moradia.

Com baixíssimo grau de escolarização, os entrevistados se revelaram com dificuldades ainda maiores para fazerem quaisquer considerações sobre significados, causas e implicações de alterações na dinâmica climática. Destaque para o alto índice de respostas “não sei” ou “não respondeu” às perguntas do questionário referentes ao agravamento do clima ou mesmo no que as alterações podem afetar a comunidade ou as famílias. Os índices de 38%, 44%, 56% e até 88% respectivamente de tais respostas podem ter sido alcançados por diversos motivos, entre eles: a premência de carências sociais toma o foco no cotidiano e discurso da população; e as questões das mudanças climáticas ficam designadas a significados mais abstratos e de cunho distante dos moradores.

Outra possibilidade refere-se ao problema das mudanças climáticas serem algo trazido pela academia, pesquisadores e mesmo formadores de opinião. Ou seja, não é um problema percebido, tratado ou mesmo considerado pela comunidade da Tapera. Tanto é que, em relação à pergunta “o clima vem mudando?”, as respostas “não, “pouco” e “não sei” de moradores da Tapera da Base totalizam 81% das percepções, enquanto que em outras comunidades brasileiras participantes da pesquisa ocorre exatamente o oposto, onde a ampla maioria dos entrevistados respondeu que o clima vem mudando “muito”.

Tabém deve ser considerada a proposição, já enfatizada por Bonatti et al (2010), de que a comunidade da Tapera da Base tem como característica o contexto urbano – aspecto que muito possivelmente afasta os moradores do contato direto com os fenômenos do clima de forma mais específica, como é o caso de agricultores que dependem do clima para prover o sustento.

No tocante a questão de saúde humana apesar de estudos (CESA, 2010) apontarem que a população da Tapera da Base, vive em uma situação de alto risco de contrair doenças de veiculação hídrica foi registrado como 0% de respostas de danos a saúde no questionário das famílias relacionados com alterações no clima.

Todavia, na medida em que se possibilitava aos entrevistados discorrerem sobre assuntos que a eles interessavam mais, uma antiga informação fortemente relacionada ao objeto da investigação pode então ser melhor interpretada. Segundo os próprios catadores de berbigão, a crescente dificuldade de sustentar-se a partir da caça/coleta desse molusco decorre de que estes são encontrados mortos antes de serem recolhidos. Portanto, diferentemente do que se sabia a partir de informações obtidas junto ao Grupo Focal e Atores Sociais, não estaria ocorrendo um “desaparecimento” do berbigão da região. Os moluscos estão morrendo, talvez até em função de efeitos de mudanças mais gerais do clima, mas muito provavelmente em decorrência da crescente poluição, acarretando a redução de biodiversidade, e das atualmente diferentes dinâmicas da maré. Trata-se, de qualquer forma, de um incremento de vulnerabilidade, especialmente de um segmento da comunidade em decorrência da crescente vulnerabilidade social mais geral.

Há, de modo geral, um comportamento de conformidade ou de conformismo, se não de desânimo, que contrastam com algumas manifestações sobre a necessidade de reagir. Em relação à capacidade de enfrentamento ou de resposta da comunidade aos possíveis riscos advindos de eventos climáticos extremos, 69% dos entrevistados responde não saber se preparar ou reagir às conseqüências das mudanças do clima. Ainda 19% não responderam a esta pergunta. Considerando estes dados e a precária infraestrutura da comunidade a equipe avalia que a capacidade de enfrentamento é frágil. Um dos entrevistados mais idosos demonstrou postura crítica em relação à própria pertinência da aplicação do questionário. Manifestou que é comum eles serem afastados de seus afazeres para fornecer informações sobre o operar da comunidade, ou mesmo e mais especificamente do berbigão, mas pouco ou nada disso retorna em seu benefício.

No entanto, mesmo que diretamente afetado pela crescente mortandade do molusco, aquele ator social mais crítico não foi capaz de associar esse grave fenômeno ecológico com o operar ecologicamente precário da comunidade onde vive.

3.5.6.3       Olhares distintos: vulnerabilidade diferente

Já foi frisado que as respostas dos entrevistados para as questões atinentes à dinâmica climática denotam pouco ou quase nenhum conhecimento sobre o fenômeno da mudança climática global e suas conseqüências. De outro lado, supõe-se que o ser ameaçado somente pode ter noção do seu grau de vulnerabilidade mediante a possibilidade de o mesmo avaliar as dimensões da ameaça.

De fato, constata-se que os moradores da Tapera da Base, em sua absoluta maioria, têm dificuldade para se manifestar sobre mudança climática e, para relacioná-la com o estado biofísico e sócio-cultural do seu meio. Em outras palavras, os moradores não dispõem de informações adequadas para fazer uma suficiente avaliação do significado das implicações de uma mudança climática global. É improvável, portanto, inferir um real grau de vulnerabilidade percebida por essa comunidade às implicações da mudança climática simplesmente a partir de manifestações de moradores entrevistados a partir do seu estado de compreensão atual. Aliás, cabe assinalar que a insuficiência de informações elementares sobre o significado da dinâmica climática, como aquelas necessárias para distinguir variação climática e mudança climática global, não é exclusividade de moradores de comunidades carentes.

Foi também por isso que se considerou relevante um teste de aplicabilidade ou extensão de fundamentos do método IQCV/IQV para se distinguir graus de vulnerabilidade à mudança climática, quando percebida por atores de diferentes categorias sociais. Mais especificamente, a vulnerabilidade percebida lpelos próprios moradores e a vulnerabilidade da comunidade quando percebida por pesquisadores.

Assim, em consonância com a obtenção dos indicadores IQCV/IQV, derivou-se um Indicador de Vulnerabilidade Percebida pelos Moradores – IVPM e um Indicador de Vulnerabilidade Percebida por Pesquisadores – IVPP, a partir de aspectos de alguma forma já contemplados no Questionário comum aos diversos subprojetos. Esses indicadores foram obtidos pela conjunção de respectivos índices parciais: vulnerabilidade sócio-cultural; vulnerabilidade ambiental; e vulnerabilidade estrutural (infraestrutura urbana). Os aspectos considerados na composição de cada um desses indicadores parciais estão inscritos em cada um dos círculos da Figura 12.

Figura 12 Aspectos e sua natureza ou dimensão, considerados na caracterização do grau

Para investigar a percepção dos moradores da Tapera sobre os aspectos de vulnerabilidade citados anteriormente foram utilizados como instrumento de pesquisa questionários com perguntas específicas para cada aspecto. Estas mesmas perguntas foram feitas aos investigadores os quais deveriam responder em base a critérios específicos. Assim, a partir de questionários específicos para esta fase experimental bem como das observações feitas por pesquisadores, obtiveram-se as informações sobre o estado percebido para cada um desses poucos aspectos apontados (Tabela 5 e 6). A esses estados foram associadas grandezas objetivas, numéricas, segundo o método que opera o algoritmo do IQCV/IQV.

Morador

Aspectos

Transporte

Energia

Água

Moradia

Acesso à saúde

Salubridade da comunidade

Exposição a eventos

Coesão social

Alimentação

Educação

Noção dos riscos e estratégias

Renda

Segurança

1

0,375

0,375

0,375

0,375

0,375

0,375

0,625

0,625

0,375

0,375

0,375

0,625

0,375

2

0,375

0,375

0,375

0,125

0,625

0,375

0,375

0,125

0,125

0,375

0,875

0,125

0,375

3

0,375

0,125

0,375

0,375

0,625

0,375

0,375

0,875

0,375

0,375

0,625

0,625

0,375

4

0,375

0,375

0,375

0,375

0,625

0,625

0,625

0,125

0,375

0,375

0,875

0,625

0,625

5

0,375

0,375

0,375

0,375

0,625

0,375

0,375

0,625

0,375

0,375

0,375

0,375

0,375

6

0,375

0,375

0,375

0,375

0,625

0,375

0,625

0,875

0,375

0,375

0,875

0,625

0,625

Tabela 5 – Desvios (1-nota atribuída)* da condição desejável para aspectos que afetam o grau de vulnerabilidade, segundo o olhar de moradores.

* Ao estado de cada um dos i (i=1, 2…N) aspectos considerados relevantes em uma dimensão d, é atribuído um índice I de aceitabilidade tal que 0δ. Para cada dimensão d é então obtido um índice IDd, um grau de qualidade do conjunto de aspectos considerados na dimensão. Para tanto os desvios _ são processados no seguinte algoritmo:

onde N é o número de aspectos considerados, n é o número de aspectos em condições inaceitáveis, w é a importância relativa atribuída ao aspecto e r é proporcional à importância atribuída à irregularidade nos módulos dos índices I.

O indicador da qualidade das condições é dado pela média geométrica dos valores de IDd.

Unidade habitacional

Aspectos

Transporte

Energia

Água

Moradia

Acesso à saúde

Salubridade da comunidade

Exposição a eventos

Coesão social

Alimentação

Educação

Noção dos riscos e estratégias

Renda

Segurança

1

0,625

0,375

0,375

0,625

0,625

0,625

0,625

0,375

0,375

0,625

0,875

0,625

0,625

2

0,625

0,375

0,375

0,375

0,625

0,625

0,625

0,375

0,375

0,625

0,875

0,625

0,625

3

0,625

0,125

0,375

0,625

0,625

0,625

0,625

0,375

0,375

0,625

0,875

0,625

0,625

4

0,625

0,375

0,375

0,375

0,625

0,625

0,625

0,375

0,375

0,625

0,875

0,625

0,625

5

0,625

0,375

0,375

0,625

0,625

0,625

0,625

0,375

0,375

0,625

0,875

0,625

0,625

6

0,625

0,375

0,375

0,625

0,625

0,625

0,625

0,375

0,375

0,625

0,875

0,625

0,625

Tabela 6 – Desvios (1-nota atribuída) da condição desejável para aspectos que afetam o grau de vulnerabilidade, segundo o olhar de pesquisadores

Obteve-se, respectivamente para o Indicador de Vulnerabilidade Percebida por Moradores (IVPM) e para o Indicador de Vulnerabilidade Percebida por Pesquisadores (IVPP), os seguintes valores: IVPM = 0,45±0,035 e IVPP = 0,56±0,046. Este resultado denota a existência de diferença entre o grau de vulnerabilidade percebida pelos moradores entrevistados e pelos pesquisadores.

Importa reconhecer e valorizar a existência dessa objetiva diferença na manifestação da subjetividade presente na percepção, mais do que discorrer sobre a magnitude da diferença no grau de vulnerabilidade percebida pelas duas categorias, ou sobre possíveis razões para a diferença. De qualquer forma, mesmo que obtido em teste com amostra talvez pouco representativa, o maior nível de vulnerabilidade percebida pelos pesquisadores pode ou deve estar associado a dois aspectos: i) às diferenças nas condições sociais vividas pelos pesquisadores e pelos moradores; ii) à diferença no grau de informação sobre significado e possíveis implicações do fenômeno mudança climática. Em outras palavras, diferentes categorias sociais percebem diferentemente o significado de um estado de uma organização social.

De todo modo, o valor do indicador IVPP/IVPM não está em reafirmar a já bem compreendida diferença associada à perspectiva de quem olha, mas em identificar formas de monitorar o grau de coerência e taxa de convergência entre olhares interessados na mesma questão. Enquanto IVPM for baixo e relativamente distanciado do IVPP, pouco importa quanto possam ter melhorado as condições no olhar de quem pensa poder e ter a responsabilidade de promover melhorias. Nesse sentido, é assim que a efetividade de uma agenda de ações destinada a reduzir vulnerabilidade poderia ser verificada.

Para os moradores da Tapera da Base, as preocupações sociais e acadêmicas com as graves implicações da mudança climática, que pode levar décadas ou mesmo séculos para se processar, ainda não constituem prioridades.

Paralelamente, de alguma forma, sentem que a sua comunidade não tem sido parte das prioridades governamentais.

Por outro lado, a gravidade da questão e as implicações negativas de uma provável mudança climática serão sempre mais intensas sobre populações mais vulneráveis. Faz-se necessário, portanto e antes de tudo, fornecer mais e melhor informação sobre o significado de um problema ainda insuficientemente delimitado e, por isso mesmo, muito pouco compreendido. Da mesma forma, faz-se necessário monitorar a evolução na percepção de diferentes categorias de atores sociais com o propósito de construir capacidades para o enfrentamento de questões emergentes das implicações de alterações climáticas ou de outra ordem qualquer.

Todas essas questões são, ao final de tudo, essencialmente referentes ao estado, às dificuldades e às oportunidades de organização social. Numa sociedade que se move mais pelo interesse do que pela razão ou, pelo menos, por uma razão sempre interessada, todas as categorias sociais têm, em comum, uma questão: o propósito de construir capacidades sociais. Mas questão bem diferente e mais concernente à missão daqueles que se propõem a estudar o processo de construção de capacidades sociais, é desenvolver capacidade/competências para bem orientar socialmente esta construção.

No presente projeto, a moradia, a alimentação, a saúde, a biodiversidade e a disponibilidade de água foram tomadas como aspectos centrais frente a possíveis impactos de uma dinâmica climática adversa. Mas a construção de capacidades sociais demanda, evidentemente, atenção para outros aspectos igualmente importantes, como educação, coesão social, entre outros. De qualquer forma, será sempre a resultante da integração de todos estes aspectos que definirá o grau de capacidade para a sustentação da organização social. É preciso, portanto, compreender o grau de vulnerabilidade de uma comunidade, ou a sua capacidade em se reproduzir socialmente, como o estado resultante de múltiplos microestados que compõem a realidade desta comunidade. Para exemplificar, podemos ter uma determinada comunidade na qual a assistência à saúde publica é boa, contudo apresenta péssima qualidade de segurança publica. Como avaliar de fato a vulnerabilidade social nesses termos? É justamente a forma como ambos os aspectos (e outros) interagem que determina o grau de vulnerabilidade da comunidade e, assim, a possibilidade de construção de capacidades da mesma. Desta forma o estado de vulnerabilidade obedeceria a princípios sistêmicos, como os trazidos por Pascal, pensador-chave do pensamento complexo, nos quais o operar do todo é diferente do que a soma do operar das partes, pois resulta da interação qualitativa entre elas.

Neste sentido, partindo do método IQV/IQCV e de avanços já em andamento no âmbito do Núcleo de Estudos em Monitoramento e Avaliação Ambiental – NUMAVAM/UFSC[6], a equipe do Subprojeto Populações/Florianópolis apresenta, a seguir, elementos conceituais e metodológicos (em desenvolvimento) que visam a melhor compreensão e tratamento dos diferentes aspectos que determinam as possibilidades frente ao propósito de construir capacidades sociais.

3.5.6.4       Estado de vulnerabilidade x qualidade do processo

A Figura 13 apresenta o propósito construir capacidade social como uma função de ponto, de estado atual, uma emergência, uma propriedade sistêmica, mas multidimensional. A partir de cada dimensão e de suas incontornáveis superposições, a figura ilustra o que conceitualmente pode-se reconhecer como indissociável, o geral, e como distinguível, o especifico – como é e próprio da visão que parte do geral para garantir significação à parte.

Todavia, o estado atual de um sistema não é a mesma coisa que qualidade do operar do sistema. De acordo com conceitos fundamentais da termodinâmica, o estado atual do sistema diz respeito às condições hoje existentes, independentemente da qualidade da dinâmica que a produziu, em analogia. Sistemicamente, a qualidade do operar do sistema refere-se à qualidade das condutas humanas e das possibilidades de sustentar as relações que possibilitaram o estado atual: uma função de linha, de processo.

Note-se que o estado atual pode ser avaliado de acordo com a habilidade dos indivíduos utilizarem os meios disponíveis, mas a qualidade do operar do sistema somente será boa se o conjunto de condutas individuais for socialmente apropriado ao propósito de construir a capacidade social relativa a adaptação as adversas dinâmicas climáticas.
Figura 13. Aspectos e sua natureza na definição da qualidade do estado do sistema de relações a partir das quais emerge capacidade social e da qualidade do operar desse sistema.

Enquanto o IQV/IQCV distingue estados dados e percebidos por diferentes olhares, na construção de uma capacidade social é necessário que esses mesmos olhares possam distinguir entre o estado em si e o processo que possibilita ou não a sua reprodução. De acordo com os sólidos princípios da termodinâmica, é possível ordenar estados sem que isso implique desordem em quantidade maior em estados anteriores. Por isso, pouco pode significar o estado promovido até o presente no âmbito social, se o processo de sua promoção implica excesso na redução do potencial de possibilidades que precisa estar disponível para “sempre”. A vulnerabilidade pode ser mais produto da natural e desmedida habilidade de poucos se adaptarem do que da dificuldade de socialmente muitos se ajustarem.

3.5.6.5       Contribuições para uma agenda de ações

Os entrevistados apontaram as evidentes necessidades de melhoramentos na infraestrutura da comunidade, estando incluídas aí as condições que determinam uma dinâmica hidrológica, cujas implicações vão de repetidos alagamentos a uma permanente condição de baixa salubridade local. Contudo, os atores sociais da Comunidade da Tapera da Base não associam uma possível elevação de sua vulnerabilidade a uma dinâmica climática – pelo menos não para além daquela dinâmica que percebem a partir de eventos e estações do ano. Como foi visto anteriormente, A expressão Mudança Climática não é parte do seu vocabulário e, muito menos, a noção desse fenômeno é parte do universo significativo que orienta seu operar.

Por tudo isso, mais do que apontar algumas entre muitas ações pontuais ou emergenciais eventualmente justificáveis, importa incentivar a ação que possa promover mudança no operar da própria comunidade. Em outras palavras, seja em relação à dinâmica climática ou a quaisquer aspectos que podem ser ou não agravados em face dessa dinâmica, a proposta é que, a fim de diminuir a vulnerabilidade da populosa Comunidade da Tapera da Base, possamos promover condições para que os moradores da comunidade sejam atores sociais ativos de sua trajetória social. Assim, a comunidade poderá se apropriar dos efeitos possíveis de uma determinada ação, quanto se beneficiar mais continuamente da sinergia de efeitos das poucas e descontinuas ações que são externamente promovidas.

Enfim, a vulnerabilidade da comunidade da Tapera não decorre tão somente de prováveis ameaças climáticas. As alterações climáticas, entendidas como uma ameaça, só evidenciam o estado de vulnerabilidade da comunidade devido ao potencial risco de alagamentos. Ainda assim existem outros riscos que a comunidade está sujeitas, como os doenças, que devidos as suas condições precárias. Assim, havendo adequado investimento em ações básicas e constitucionalmente de obrigação do Estado (educação, saúde e infraestrutura), a comunidade em muito diminuirá seu elevado estado de vulnerabilidade. Tal redução seria independente tanto do olhar e das diferentes ameaças possíveis quanto de uma agenda de ações isoladas que possam ser externamente apontadas.

Assim, referente à provável mudança climática, mas sempre se levando em conta a realidade vivida hoje pela comunidade, os investigadores propõem, para fins de definição de uma contribuição de tópicos que poderão compor uma agenda de ações a ser construída pela e adotada na comunidade, tendo os seus lideres como multiplicadores e provavelmente como gestores deste processo de construção conjunta, numa ação concertada, continuada, em esforços ou fases que se superpõem no tempo. A saber:

– Informar apropriadamente a comunidade sobre o significado e sobre implicações possíveis da mudança climática (fase da informação). Esta primeira fase, que não cessa ao iniciar a segunda, demanda organizar textos (com diferentes níveis de complexidade), bem como promover contextos adequados ao uso destes textos para a aquisição de conhecimento e capacidade de inferir a partir da informação;

– Possibilitar que a comunidade reconheça a sua e outras percepções sobre o fenômeno da mudança climática (quais são as ameaças percebidas). Nesse sentido, é preciso estimular a capacidade de associar essas percepções ao seu estado atual. Assim, será possível construir uma avaliação de como as suas condições influem na vulnerabilidade biofísica e sociocultural (vulnerabilidade), o que implica na compreensão das Mudanças Climáticas como risco (fase da reflexão).

– Juntamente e a partir de demandas apontadas ou reconhecidas pela comunidade, delinear procedimentos e ações específicas para mudar estados dos aspectos determinantes da sua vulnerabilidade às mudanças climáticas (fase da instrumentalização). A proposição, inspirada nos preceitos do Educador Paulo Freire, visa promover a autonomia da comunidade como um todo para além de ações pontuais. Em outras palavras, promover e estimular a capacidade de organização social.

– Outra etapa, com ações que se iniciam junto com a primeira, demanda mobilizar conhecimentos especializados, sempre conforme com um saber orientado pela vontade do sujeito que o mobiliza. Esta fase pode estar também associada à promoção da captação de recursos financeiros para execução de ações específicas para mudar estados de aspectos determinantes da sua vulnerabilidade.

Além das ações que pudessem atender as fases acima referidas, outras identificadas nas manifestações de atores sociais ou no grupo focal já foram, de alguma forma, apontadas. Estas podem ser promovidas pela ação do poder público através de suas políticas públicas contribuindo na construção desta capacidade de enfrentamento:

– Necessidade de um melhor atendimento médico no posto de saúde local. Ações como essa, evidentemente, teriam influência direta sobre o setor de impacto saúde.

– Melhor organização de atividades, como aquelas ligadas à coleta seletiva ou de efluentes, que podem ter importantes efeitos sobre o setor de impacto biodiversidade. Trata-se de ação recorrentemente apontada nas manifestações do grupo focal.

Para a planificação das situações de emergência, os mapas de risco também podem contribuir com as ações de caráter logístico no enfrentamento das situações emergenciais, na evacuação da população frente a um perigo eminente, nas operações de atendimento e na restauração das casas afetadas.

Finalmente, ainda que não seja considerado um setor de impacto, a coesão social foi citada como aspecto a ser desenvolvido através da criação de espaços e atividades recreativas. Esses espaços poderiam desempenhar papel relevante na nucleação de condutas interessadas na promoção de ações mais abrangentes e concertadas.

3.5.7 Considerações finais

A primeira e mais evidente conclusão neste estudo de caso é a de que a Comunidade da Tapera da Base vive, no geral, um estado de elevada vulnerabilidade, de baixa resiliência e de considerável resistência

Em seu sentido mais amplo, uma vulnerabilidade biofísica elevada decorre, principalmente, do contexto social em que a comunidade está inserida. A baixa resiliência, compreendida como a insuficiente capacidade de no dia-a-dia se restabelecer sem empobrecer cada vez mais, é produto das dificuldades crescentes para sustentar-se em um sistema social. Já a quase heróica resistência é, possivelmente, expressão de uma emergência, ou seja,a coragem e a solidariedade que seres sociais ameaçados encontram em si a partir da precariedade de condições que podem afetar a todos e cada um.

A taxa de incremento de riscos associados à ameaça representada pelas dificuldades vividas no dia-a-dia é, ainda, bem mais elevada do que a taxa do agravamento dos riscos implicados numa ameaça climática sobre a qual os moradores sequer dispõem de informações para considerar futuras implicações.

Vale lembrar que mais de 80% do grupo entrevistado sequer reconhece que estejam ocorrendo significativas alterações climáticas. Mesmo quando solicitados a fazê-lo, os moradores da Comunidade da Tapera da Base não refletem mais profundamente sobre a necessidade de se adaptar às possíveis e graves implicações de uma mudança climática global.

A principal prioridade dos moradores da Tapera, quando não a única, é adaptar-se para sobreviver ao seu mundo, em seu estado e operar precário atual.

Esta canalização de atenção às dificuldades socioeconômicas e de superação imediata de carências de ordenamento urbano é, ao mesmo tempo, fonte de fortalecimento da comunidade e, também, de crescente vulnerabilidade dos moradores da Tapera da Base. Fortalecimento porque seus moradores desenvolvem capacidade de priorizar o essencial, o emergencial; mas também fonte de crescente vulnerabilidade porque dificulta refletir sobre suas demandas futuras, ou seja, sobre a evolução de um mundo essencialmente cambiante, que apresenta sempre novas e mais complexas demandas.

Sobre quem poderia ser mais afetado pelas mudanças climáticas ou o que de seu interesse seria mais afetado pelo fenômeno, os atores sociais, insistentemente, apontam para seu próprio entorno a partir da dinâmica do dia-a-dia: os alagamentos, a incidência de doenças transmissíveis, o transporte deficiente, a escola, a poluição… Sobre como se adaptar às implicações das mudanças climáticas, os atores sociais consultados apontam, mesmo quando sem especificar ações, mas com segurança, para aspectos como a educação, o saneamento e a assistência social como as mais promissoras das estratégias.

De fato, é necessário informar suficientemente a todos sobre as implicações da mudança climática acelerada induzida pela coletividade, mas que algumas nações mais industrializadas determinaram mais. Tal ação poderia ser um dos primeiros passos para que se passe da predominante conduta da acomodação dos economicamente mais favorecidos para o delineamento de estratégias de adaptação para todos os afetados.

Mesmo o emergencial, o estrutural, o necessário para uma condição digna no exercício da cidadania no nosso modelo civilizatório passam pela informação e pela educação. Apontar a urgência de ações de saneamento, ou de assistência ao ordenamento do uso do solo, ainda não é caracterizar uma emergência na construção de um social melhor. Emergência na atitude é aquilo que não pode esperar, mesmo que não possa e não deva ser orientado pela pressa. A cidadania demanda informação e educação, ou seja, a instrumentalização do ser social que se caracteriza e se realiza a partir de uma complexa e elaborada comunicação.

Considerada a persistente história de carência vivida pelos moradores da Tapera da Base, é razoável concluir que não é somente o setor ou os responsáveis pelos serviços públicos que precisam ser avisados, lembrados ou mesmo incitados a atentar para as necessidades urgentes da comunidade. É a comunidade que precisa elevar-se à condição de portadora do saber agir para exigir igualdade no dispor de serviços públicos e, em especial, dispor de seu próprio potencial. Enfim, em sociedade que se quer orientada pelo império do direito, a capacitação para o exercício da cidadania está mais em fazer-se apto a procurar e, nem tanto, em saber oferecer.

A evolução de um sistema, seja para melhor ou para pior, é produto de propriedade do próprio sistema e não de seus componentes ou do meio no qual está inscrito (MATURANA & VARELLA, 1995, ATLAN, 1992). Ou seja, somente o sistema pode determinar em que sentido e como evolui. Por outro lado, somente componentes ou fatores externos podem desencadear novidades promotoras de condições à evolução do sistema comunidade. Para a evolução da comunidade é, portanto, necessário desencadear ações que sejam coerentes com o operar de seu próprio sistema. Este se reproduz e somente pode evoluir a partir da capacidade de componentes comunicarem-se: ações voltadas à informação, à educação, à capacitação para a autodeterminação.

É por isso que, entre os mais relevantes apontamentos para compor uma agenda de ações, pensa-se na organização de instrumentos paradidáticos a fim de possibilitar à comunidade melhor apreender, a partir de sua própria realidade, a questão associada à mudança climática em curso. Enfim, um eventual saber, que aponte medidas para reduzir a vulnerabilidade de comunidades às implicações de uma mudança climática, seria suficiente para apontar como diminuir dificuldades de comunidades hoje já vulneráveis as implicações de eventos climáticos normais.

Sobre adaptar-se ao clima, não carecemos tanto de conhecimento – a não ser aquele necessário para induzir mudança no comportamento daqueles que sabem o bastante.

Finalmente, o mais evidente dos resultados foi a constatação de que a expressão mudança climática e outras a ela relacionadas não fazem parte do universo significativo a partir dos qual moradores da Comunidade da Tapera distinguem o mundo que vivem. Independentemente de terem ouvido ou visto menções sobre o assunto, os moradores não demonstraram interesse em discutir esse tema e, muito menos, denotaram ter pensado ou estar em condições de fazer considerações a respeito da dinâmica climática. Claro, estão excluídas aí as manifestações sobre eventos climáticos pouco comuns e eventualmente lembrados pelos moradores.

Ignorar a natureza, a origem e as dimensões daquilo que nos ameaça também nos revela vulneráveis no que diz respeito a desenvolvimento de estratégias e tomada de decisão. Por isso, na organização social demais orientada pelo “ter”, a ignorância ainda é a maior das ameaças. Na medida em que se queira promover ações para reduzir a vulnerabilidade de comunidades carentes e, assim, caminhar na direção de um social mais orientado pelo “ser” autônomo e capaz, convém apostar na democratização da informação e, em especial, na educação.

Emergem disso tudo demandas importantes: os moradores precisam de espaços e condições para se informar e refletir sobre o fenômeno das mudanças climáticas e suas implicações. Desta forma as pessoas poderão efetivamente participar do processo de construir capacidades, estas referindo-se a um estado que deve ser construído pela própria comunidade. Para tanto é necessário, antes de tudo, seja no âmbito da comunidade carente ou das instituições que podem intervir a seu favor, conhecer, compreender e compartilhar significados que caracterizem a questão associada à dinâmica climática.

Convém, por isso, desde logo enfatizar o que de alguma forma já foi apontado neste relatório: impõe-se reconhecer que a própria dificuldade de perceber a dimensão da ameaça constitui fator determinante do grau de vulnerabilidade do ameaçado. Somente mediante a condição para uma leitura do fenômeno em si e da compreensão do significado de suas possíveis implicações, seria possível aos sujeitos, ou sujeitados, dispor de condições para um mínimo de controle sobre sua própria realidade de ameaçados pelas mudanças climáticas.

3.5.8 Referências Bibliográficas

ATLAN, H. Entre o cristal e a fumaça: ensaio sobre a organização do ser vivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

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>>>   Este documento foi parte elementar do Relatório final da Pesquisa “Mudanças climáticas, desigualdades sociais e populações vulneráveis no Brasil: construindo capacidades – Subprojeto populações. Esta parte é de autoria de Luiz Renato D´Agostini, Michelle Bonatti, Larissa Hery Ito R. Homem e Paulo Martins Rangel, do Numavam – UFSC. Relatório Técnico 5, maio de 2011, Páginas 556 – 614. COEP. Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas.   <<<


[1] O complemento “da Base” na denominação da Comunidade decorre da sua localização junto à Base Aérea de Florianópolis.

[2] Os cinco setores de impactos (Água, Moradia, Saúde, Alimentação e Biodiversidade) destacados no projeto serão igualmente destacados nos termos deste relatório.

[3] Berbigão é nome comum do molusco bivalve da espécie Anomalocardia brasiliana, utilizado como alimento humano.

[4] Vide o Anexo com a descrição comentada das respostas das entrevistas com grupo focal e atores sociais.

[5] O número de questionários aplicados restringiu-se a 08 principalmente pelo contexto criado pela sua aplicação: desconforto e desinteresse dos entrevistados em responder um questionário excessivamente longo e sobre assunto que, a nosso ver, lhe parecia desconexo das reais dificuldades vividas na comunidade.

[6] Documento interno do Núcleo de Estudos em Monitoramento e Avaliação Ambiental – NUMAVAM/UFSC denominado Indicador de Vulnerabilidade Percebida pelos Moradores –  IVPM e um Indicador de Vulnerabilidade Percebida por Pesquisadores – IVPP